terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Ilhotas, Raça Negra e lembranças

Anos atrás por volta das 22h da noite, sempre uma sexta feira, o ônibus de excursão do Benjamin, morador do bairro Ilhotas, saia no rumo de Barra Grande - PI. Na época era ritual familiar, todo ano, no setembro era tempo de ir à praia. Minha Tia Remédios ia sempre nas poltronas da frente, ela dizia que se acontecesse alguma coisa era mais fácil de sair do ônibus e ainda tinha o bônus de não ficar perto do banheiro 'fedorento'. Meu Tio Antônio, marido dela, gostava de conversar e nunca dormia nas viagens, ia sempre na frente ao lado do motorista. Conversava, tomava café e depois na madrugada, quando o silêncio se instalava e ouvia-se apenas os motores e o barulho do automóvel cortando o vento, ele ia velar nosso sono, "ver se ta tudo bem" dizia. Mas antes da calmaria, o cd do Aviões do Forró volume 1 'truava' solto, normalmente a galera que participava da excursão era sempre a mesma, a clássica formação de moradores da comunidade Ilhotas. Aquele mesmo pessoal que gostava de tomar umas cervejas no Seu Nonato, fazia uma farra dentro do ônibus com suas loiras geladas no isopor e comendo a farinha com frango destinada pro dia na praia. Meu pai fazia parte do nada seleto grupo, então quase nunca sentava do lado de minha mãe,estava sempre andando de um lado pro outro conversando e tomando uma gelada com os amigos, enquanto as meninas mulheres mais espevitadas tentavam dançar no corredor minusculo do veículo.

O decorrer da viagem era basicamente esse se não fosse o meu enjoo infantil a viagens longas de automóveis, eu sentava do lado da minha irmã Michelly, que sempre foi calma e dormia a viagem toda. Eu nunca parava quieta, ficava indo e vindo da minha poltrona a poltrona do meu Tio Antônio. Quando eu passava mal, corria pro lado vazio da minha "Tia Remede" ela passava a mãos pelo meu colo, subindo pelo pescoço como um tranquilizante, o movimento em fluxo, era como se as mãos dela impedissem que o enjoo viesse e o refluxo voltasse. Ali mesmo eu adormecia, ouvindo as vozes e a música. Naquele tempo minha mãe ainda não tinha meus outros dois irmãos, então, eu e minha irmã eramos as únicas preocupações. Já de madrugada, as pessoas começavam a se recolher em suas respectivas poltronas, o Benjamin já mudava o ritmo das canções, para esses momentos cabia bem músicas francesas "sexy's", lembro bem de Je T'aime Moi Non de Jane Birkin et Serge Gainsbourg ou simplesmente "música internacional de saliença" como dizia mamãe. 

Aos poucos todos iam se calando e o silêncio que já mencionei anteriormente chegava, era a vez de mainha vir me buscar da poltrona do meu tio e me colocar na minha. Meu pai a esse momento já tinha uma toalha sobre os olhos e roncava com a boca aberta. Eu voltava pro meu lugar adormecida, mas sentia quando meu tio caminhava de ponta a ponta do ônibus, olhava todos, e passava a mãos pela minha cabeça e de Michelly que já dormia há tempos. Depois de feito isso, só assim ele poderia sentar na sua poltrona ao lado de titia e descansar. 

Eu acordava com a frecha de luz no meu rosto e Raça Negra tocando no ônibus. Todos já estavam acordados e ouviam a música, já prevendo que o destino estava perto. Eu abria a janela e sentia aquele clima, aquele vento que só uma terra com praia poderia ter. Poderia descrever inutilmente o vento como um oxigênio com sal, é como se o vento tivesse um gosto, um gosto salgado. O asfalto dava lugar a areia branca e as palmeiras apareciam, a brisa marítima já se fazia sentida. E todo o sentimento se misturava dentro de mim, com as canções. Muitas viagens foram feitas depois dessa, meus irmãos nasceram, eu cresci, não moro mais na Ilhotas, meu pai já não frequenta mais o Bar do Seu Nonato, mas ainda quero poder estar chegando na praia ao som de Raça Negra.